Alavancas financeiras: entendendo a aposta do Barcelona
Por André Ramicelli
A derrocada do gigante catalão
Um dos maiores clubes de futebol do mundo, o FC Barcelona entrou em uma crise financeira e institucional profunda, muito por conta da má administração do clube nas mãos da diretoria de seu ex-presidente Josep Maria Bartomeu. Em meio a denúncias de corrupção, Bartomeu executou uma gestão irresponsável financeiramente, promovendo gastos exorbitantes e que não geraram o devido retorno esportivo. Com as finanças já comprometidas, a chegada da pandemia da COVID-19 foi fatal para o clube catalão, que ao ter suas receitas muito comprometidas não conseguiu sustentar os gastos altíssimos que já vinham de muito tempo.
O gigante do futebol europeu atingiu o fundo do poço em agosto de 2021. Após chegar a um acordo com Lionel Messi para a sua renovação de contrato, teve a inscrição do craque argentino vetada por La Liga, já que ultrapassaria os limites salariais permitidos para cada clube, que são definidos de acordo com suas receitas, através do fair play financeiro. Dessa maneira, o Barcelona viu o maior ídolo de sua história ter que se despedir de maneira melancólica, se transferindo para outro clube pela primeira vez em sua carreira, algo que parecia inimaginável.
Após anos mágicos em que teve, entre outros, o time de Guardiola e o trio MSN encantando o mundo vestindo suas cores, o clube catalão se viu perdido, com as contas muito debilitadas, sem seu maior ídolo e com sua imagem extremamente arranhada perante o mundo do futebol.
Recuperando o prestígio
Mesmo com o enorme rombo nos cofres do clube, o que se viu na última janela de transferências foi um Barcelona protagonista, contratando nomes disputados no mercado por preços bastante altos. Foram os casos de Robert Lewandowski (45 milhões de euros), Raphinha (50 milhões de euros) e Jules Koundé (50 milhões de euros), além da renovação de Ousmane Dembelé e de outras contratações menos badaladas.
Dessa maneira, diversas dúvidas começaram a surgir na cabeça de quem acompanha futebol. Como o Barcelona está conseguindo fazer todas essas contratações se até outro dia não tinha dinheiro? De onde está vindo esse dinheiro? O clube está sendo irresponsável? Estaria o Barcelona vendendo o seu futuro para poder pagar o seu presente? Este texto tem como objetivo tentar esclarecer todas essas dúvidas e explicar no que um dos maiores clubes de futebol do planeta está apostando para resgatar seu prestígio e seus dias de glória.
As alavancas financeiras
Para poder contar com um time atrativo e competitivo a nível europeu, o Barcelona precisou ir atrás de receitas. Assim, o modelo encontrado perante a situação financeira complicada do clube catalão foi o das alavancas financeiras, modelo defendido por seu presidente Joan Laporta e aprovado pelo conselho no dia 16 de junho de 2022.
As alavancas consistem na venda de direitos sobre patrimônios e receitas futuras do clube para empresas parceiras. Dessa maneira, o clube obtém o caixa necessário para o seu projeto esportivo do presente e aposta que a atratividade de uma equipe competitiva e recheada de estrelas compensará a perda das receitas vendidas. Até setembro de 2022, momento em que o texto foi escrito, foram ativadas 4 alavancas. Vamos a elas.
Alavancas 1 e 2: Direitos de televisão
As duas primeiras alavancas financeiras acionadas pelo Barcelona representaram a venda de 25%, 10% na primeira e 15% na segunda, do valor de direitos de transmissão que o clube terá a receber de La Liga pelos próximos 25 anos, para a empresa norte-americana Sixth Street, no valor de 530 milhões de euros.
Para entender o que isso representa para o orçamento do Barcelona e seu futuro, é importante colocar os números em perspectiva. Na última temporada de La Liga, o clube catalão recebeu 165 milhões de euros de direitos de transmissão, montante que representou 21,5% de seu orçamento na temporada. Ou seja, 25% dessas receitas representariam cerca de 5,4% do orçamento do clube.
Outra questão que inevitavelmente chama a atenção é a longa duração do acordo, e o quanto isso pode ser desvantajoso no futuro com a valorização dos direitos. Para se ter uma noção, pouco exata, já que existem diversas variáveis envolvidas para sabermos o quanto esses direitos valerão no futuro, há 25 anos o Barcelona recebia cerca de 30 milhões de euros de direitos televisivos da liga espanhola por temporada. Comparando com o valor atual, encontra-se um aumento de 5,5 vezes. Ao usar essa taxa para prever uma estimativa de quanto o clube receberá de direitos em 25 anos, obtém-se o valor de 907,5 milhões de euros por temporada. Um quarto desse valor representaria cerca de 226,9 milhões de euros.
Olhando esses dados friamente, é difícil imaginar que o negócio seja vantajoso para o Barcelona. Porém, a aposta do clube é de que os 530 milhões de euros recebidos pela venda possam ser usados de maneira a gerar outras receitas, ao mesmo tempo em que seja possível ter um time competitivo. Basicamente, se hoje as receitas de direitos de transmissão representam 21,5% das receitas totais, a ideia é de que essa porcentagem se torne menos relevante em meio ao impulsionamento de receitas de outras áreas, como o merchandising, a bilheteria de jogos e o museu do clube, que antes da pandemia era o segundo mais visitado da Espanha.
Um ótimo exemplo do porquê essa estratégia pode dar certo são as lojas oficiais do clube na Catalunha, sobre as quais este tem 100% dos direitos de merchandising. Ao contratar astros, como o atual detentor do prêmio de melhor jogador do mundo da FIFA, Robert Lewandowski, se espera um impulsionamento das vendas dos produtos do clube, de maneira a fazer com que a estratégia de sacrificar receitas futuras contando com o aumento de outras receitas no presente, possa, de fato, vir a ser rentável. A ideia dentro do gigante catalão é de que as receitas com merchandising, que representaram 56 milhões de euros na temporada passada, dobrem na atual, o que já representaria um lucro em relação à fatia dos direitos de transmissão que a Sixth Street detém no primeiro ano do acordo.
É importante ressaltar que existem claras diferenças entre o que o Barcelona faz com essas duas primeiras alavancas e o tradicional adiantamento de receitas da televisão no futebol brasileiro, muitas vezes citado como comparação. Como explicitado, o clube europeu está vendendo 25% de uma receita que representa 21,5% de seu orçamento atualmente. Já nos casos do futebol brasileiro, as receitas de televisão chegam a representar até 50% do orçamento dos clubes muitas vezes, além de que o adiantamento realizado costuma ser de 100% delas. Portanto, essa comparação pode ser considerada extremamente superficial.
Alavancas 3 e 4: Barça Studios
As duas últimas alavancas financeiras consistem na venda de 24,5% da Barça Studios para a empresa Socios.com, por 100 milhões de euros, e de outros 24,5% desta pelo mesmo valor, só que para a companhia Orpheus Media. Arrecadando, portanto, 200 milhões de euros ao todo, por 49% da empresa.
A Barça Studios é uma companhia que tem como responsabilidade produzir conteúdo audiovisual para a Barça TV e para as mídias sociais do clube, além de ter o objetivo explorar outros setores emergentes, como o de blockchain e NFT. E é esse objetivo que faz a venda de pouco menos da metade da empresa fazer sentido.
Além de trazer o dinheiro necessário para fazer contratações e inscrever jogadores no presente, o negócio possibilita que o Barcelona se una com empresas já estabelecidas em um setor que o clube pretende explorar, mas que talvez não tenha a expertise necessária para tal. A Socios.com, inclusive, é especialista em fan tokens, mercado ascendente na atualidade.
Dessa maneira, com a ajuda destas empresas parceiras, o gigante catalão pretende acelerar o crescimento de sua estratégia de audiovisual e de blockchain, NFT e tudo aquilo que envolve a web 3.0, ao mesmo tempo em que consegue as receitas necessárias para colocar em prática seu plano esportivo.
Uma aposta válida?
À luz dos fatos apresentados, fica claro que ao acionar estas alavancas financeiras, o Barcelona faz uma aposta na atratividade de um time competitivo e estrelado que, acima de títulos, traga a visibilidade necessária para gerar receitas que compensem as receitas futuras sacrificadas neste processo. Fato é que, sem o impulsionamento possibilitado pelas alavancas, muito dificilmente o clube conseguiria recuperar o status de potência esportiva no âmbito europeu em um curto prazo, se arrastando em uma crise que poderia ser brutal para a marca Barcelona e o peso que a acompanha, peso esse que também é fundamental para a questão financeira.
É bom salientar que, se não fossem gestões irresponsáveis do passado, o clube catalão não dependeria desta estratégia arriscada para poder ter um presente prolífico esportivamente. Porém, dado o cenário atual, que está muito longe do ideal, a aposta, por mais arriscada que seja, pode ser justificada por toda a teoria que lhe envolve.
A estratégia é clara. Construir um time estrelado e competitivo, de modo a possibilitar um futuro rentável a partir de um presente próspero. No entanto, só o tempo poderá dizer se este time atrativo, possibilitado pelas receitas das alavancas, será suficiente para fazer a roda girar, de maneira a compensar as receitas futuras comprometidas no processo e não prejudicar o futuro de um dos maiores clubes de futebol do planeta.