E-Sport é ou não é Esporte?
Visões opostas sobre uma discussão que é mais complexa do que parece
por Gabriel Terassi, Guilherme Moraes, Hugo Palo, Isabela Crimo, Leo Yudi e Matias Prata
No começo deste ano, a Ministra dos Esportes, Ana Moser, deu uma declaração em sua cerimônia de posse sobre não reconhecer os E-Sports como Esportes. Na ocasião, a ministra estava discutindo sobre possíveis investimentos da pasta e disse que a questão do esporte eletrônico a nível federal ainda não era uma realidade e que não tinha intenção de investir nisso. No entendimento dela: “não pode ser considerado esporte”.
Essa declaração gerou um grande debate na internet a respeito do reconhecimento ou não dos E-Sports como Esportes. Diversos jogadores, personalidades do ramo e especialistas argumentaram a favor e contra a ministra. Mas afinal, podemos considerar E-sports esportes ou não? Nosso objetivo nesse texto é ilustrar os argumentos de ambos os pontos de vista, para mostrar que a discussão não é tão simples como parece.
Por que E-sports não são Esportes:
Um dos principais argumentos contrários a categorização dos esportes eletrônicos como esportes é a falta de atividade física. Um dos aspectos marcantes da prática esportiva são seus benefícios a saúde do indivíduo, o que os E-Sports não são capazes de prover completamente, já que sua prática ocorre na grande maioria das vezes com a pessoa sentada em frente ao computador ou televisão, o que gera pouca atividade física do jogador.
De fato, é possível argumentar que os E-Sports são benéficos para o desenvolvimento do raciocínio rápido e do reflexo dos jogadores, já que envolvem precisão nos movimentos e tomadas rápidas de decisão, porém eles deixam muito a desejar na parte da saúde física do jogador. Quando se pratica por exemplo 1 hora de basquete ou futebol, você submete seu corpo a uma atividade cardiovascular que é saudável para o condicionamento físico do corpo, coisa que 1 hora de E-Sport não é capaz de proporcionar.
Um bom exemplo dessa situação é quando um médico te recomenda aumentar a prática de exercícios físicos através de algum esporte. Em nenhuma hipótese você vai aumentar as horas de esportes eletrônicos e muito menos isso será indicado pelo seu médico. No quesito de promoção de saúde como aspecto do esporte, os E-Sports são incapazes de cumprir.
Por isso, do ponto de vista da atividade física, principalmente cardiovascular, como uma característica importante do esporte, não é possível caracterizar os E-Sports como esportes.
Uma das principais diferenças entre o E-Sports e o esporte tradicional está na propriedade das competições. Com efeito, o esporte tradicional não tem proprietário, tendo em vista que as modalidades são de domínio público. Já nos E-Sports, a propriedade intelectual é detida pelos desenvolvedores dos jogos, os denominados “publishers”, que desenvolvem e comercializam os jogos. Assim, nota-se que os jogos são produtos protegidos pela lei, de modo que é imprescindível a autorização dos publishers para a organização de competição, visto que essa constitui exercício de atividade econômica.
A dificuldade de investir dinheiro público no cenário dos E-Sports está diretamente relacionada à falta de centralização e regulamentação da modalidade. Diante da carência de uma estrutura regulatória clara e instituições de governança estabelecidas por uma entidade central de administração, verifica-se um desafio para as autoridades públicas justificarem o investimento de recursos financeiros.
Um exemplo para entender melhor esse entrave seria uma situação onde o poder público decide investir na prática de basquete comparada com uma situação onde ele investe na prática de CS:GO (Counter-Strike: Global Offensive). Quando há alocação de recursos para promover o basquetebol, nenhuma empresa específica é beneficiada diretamente pelo governo. Claro que para se construir uma quadra e jogar o esporte algumas empresas seriam beneficiadas, como produtoras de tabelas e de bolas, porém nenhuma detém o monopólio sobre a prática da modalidade, o que não é o caso do CS:GO. Caso o governo investisse na prática desse esporte eletrônico, a empresa criadora e detentora dos seus direitos (Valve Corporation) seria diretamente beneficiada pelo governo, uma vez que só é possível a prática dessa modalidade de E-sports através desse aplicativo que é propriedade intelectual dessa empresa.
Por isso o investimento público nos esportes eletrônicos é uma questão complicada, já que envolveria beneficiamento direto para uma empresa específica. Essa era a principal razão da ministra Ana Moser não reconhecer E-Sports como esportes no começo do ano e decidir por não investir dinheiro destinado a esportes na categoria.
Outra questão é que os E-Sports, por serem propriedades intelectuais de empresas, não são regidos por federações, diferentemente do que ocorre com os esportes tradicionais. Se olharmos para Futebol, Basquete e Automobilismo, temos nos três esportes três grandes federações por trás da regulação de sua prática profissional: a FIFA (Fédération Internationale de Football Association), a FIBA (Fédération Internationale de Basketball) e a FIA (Fédération Internationale de l’Automobile), respectivamente, coisa que não ocorre nos E-Sports. Essa ausência de padrões regulatórios impostos por uma organização central e o caráter privativo de decisões impedem que a categoria seja considerada uma prática desportiva.
A ausência de regulamentação central também é um entrave para a inclusão dos E-Sports nos Jogos Olímpicos, maior vitrine do esporte mundial. Uma vez que não há consenso sobre as normas e regulamentos, não é possível para o COI (Comitê Olímpico Internacional) introduzir os jogos eletrônicos na competição.
Um último ponto mais sociológico interessante de ser discutido é a necessidade dos E-Sports de se prenderem ao conceito de Esportes. Sociólogos argumentam que é possível interpretar os jogos eletrônicos como uma manifestação da sociedade contemporânea, um novo fenômeno sociológico de um mundo cada vez mais digital. Por serem algo novo, não precisam procurar ser definidos como esporte, podem se estabelecer como uma nova definição, que reflete o desenvolvimento tecnológico da nossa sociedade. O mundo evoluiu e a sociedade evoluiu junto, essas mudanças criam novas manifestações culturais, como os E-Sports, que surgem para uma nova sociedade, sem a necessidade de se encaixar em conceitos anteriores.
Ainda nessa linha de raciocínio, os E-Sports também não precisam ser definidos como pertencentes ao entretenimento, como muitas pessoas defendem. Eles podem buscar seu próprio espaço como um novo fenômeno sociológico do século XXI, que reflete as mudanças vivenciadas pela sociedade.
Por que E-Sports são esportes:
Para começar a discussão sobre E-Sports serem esportes podemos abordar a questão do exercício físico. A ideia de que não exigem esforço físico, um dos principais argumentos contra o reconhecimento como esporte, também é um ponto bastante equivocado, principalmente quando levado em conta a complexidade e o nível de concentração muitas vezes exigidos. Nesse sentido, muitas vezes os E-Sports são vistos de forma preconceituosa e estigmatizada, sobretudo no que diz respeito à saúde física. Assim sendo, enquanto atletas de modalidades tradicionais são vistos como extremamente saudáveis e fisicamente preparados, os cyberatletas são constantemente associados a viciados em jogos e pessoas sedentárias, o que, por sua vez, é um grande equívoco.
Desta forma, cabe destacar que em todas as modalidades de E-Sports há uma exigência de capacidades mecânicas, movimentos rápidos e reflexos apurados, tudo isso acompanhado de esforços mentais como raciocínio e estratégia, além do processamento de diversas informações simultâneas, fatores fundamentais como em qualquer esporte.
Outro fator que destaca a presença de esforços e desgastes físicos é o constante risco de lesões dentro dos E-Sports, uma vez que há intensa repetição, tensão e precisão de movimentos, os quais impactam braços, dedos, punhos, coluna e ombros, sobretudo em músculos, tendões e articulações. A título de exemplo, neste ano de 2023, Lee Sang-hyeok (“Faker”) reconhecido como melhor da história no jogo League of Legends, está afastado dos principais campeonatos em decorrência de uma lesão no braço, e assim como todo atleta, está, até este momento, em processo de tratamento e recuperação.
Outro ponto importante a favor dos esportes eletrônicos como esportes é a competitividade. Partindo do pressuposto que a competitividade possui como ideia central conseguir uma vantagem sobre outros oponentes dentro do ambiente esportivo, os E-Sports estão em pé de igualdade com os esportes. Afinal, eles, assim como os esportes tradicionais, possuem competições de nível amador a profissional que, por sua vez, são disputadas a partir do prisma da habilidade e nível competitivo dos seus participantes, para os quais são entregues premiação e reconhecimento a partir de uma classificação.
Nesse sentido, podemos traçar um paralelo entre a competitividade que existe em um torneio como a Copa Libertadores da América de futebol e o Worlds de League of Legends. A Libertadores é um torneio extremamente disputado, que ocorre anualmente e de inegável competitividade a partir do reconhecimento de que o time vencedor é o melhor time da América, premiando-o com um troféu e com dinheiro. Por sua vez, o Worlds também é um torneio extremamente disputado, que ocorre anualmente entre as melhores equipes e que premia os campeões com a taça do Invocador e com um prêmio multimilionário. Ou seja: são os mesmos fundamentos, demonstrando que a competitividade que marca os esportes tradicionais também está nos E-Sports.
Falando agora mais sobre reconhecimento internacional, já existem diversos países no mundo que consideram E-Sports como legítimos esportes, de modo a reconhecer sua relevância e capacidade competitiva. Dentro dessa lista estão países como a França, Alemanha, Áustria, Suécia, Dinamarca, Ucrânia, Rússia, Índia, Coréia, China, Taiwan, África do Sul, entre vários outros. Nesse contexto, embora ainda não haja um consenso e o debate acerca dos E-Sports seja algo recente, já existem países de primeiro mundo que reconhecem a atual dimensão ocupada pelos esportes eletrônicos, de modo a romper paradigmas e enxergar novas formas de se competir esportivamente.
Um importante marco dentro desse processo de reconhecimento foram os Jogos Asiáticos de 2022, considerado o maior evento esportivo no continente asiático depois das Olimpíadas, o qual, devido a pandemia, foi adiado e programado para o ano de 2023. A enorme importância do evento deve-se pelo fato de que jogos eletrônicos dos mais diversos gêneros passarão a ser reconhecidos, disputados e dignos de medalha oficialmente. Entre os E-Sports disputados estarão FIFA, League of Legends, Street Fighter V, Dota 2, Arena of Valor, PUBG Mobile e muitos outros.
Embora haja um certo pioneirismo nas modalidades, as competições estão sendo tratadas com o mesmo profissionalismo e competitividade que os esportes tradicionais, de modo que todos os torneios classificatórios estão sendo organizados por uma instituição máxima, a Federação de Esportes Eletrônicos da Ásia (AESF). Esse evento, ainda que não realizado, confirma e fortalece o sentimento de que E-Sports podem ser considerados esportes, sob o mesmo tratamento e grau de organização.
Por último, é importante discutir os benefícios decorrentes do reconhecimento dos E-Sports como esportes. Sem o reconhecimento oficial, os E-Sports já trazem benefícios importantes para o desenvolvimento do indivíduo como um ser social, como o trabalho em equipe, a comunicação e a competitividade saudável. Além disso, as modalidades eletrônicas incentivam a criação de comunidades, sejam elas de torcedores, equipes (amadoras, semiprofissionais ou profissionais) ou criadores de conteúdo, novamente beneficiando o desenvolvimento social.
Do ponto de vista econômico, o Ministério dos Esportes está perdendo uma oportunidade de ter nas suas mãos um mercado com enorme potencial de expansão. Na conjuntura mundial, segundo a plataforma de pesquisa Statista, o mercado de eSports gerou 1,4 bilhão de dólares em receita. A estimativa é que esse mercado, no Brasil, triplique de tamanho, processo que pode ser impulsionado por um apoio do governo.
Outro ponto importante diz respeito aos patrocínios: grandes empresas de tecnologia que poderiam compor parcerias estratégicas para o governo brasileiro promovem campeonatos de E-Sports, como a Intel, desenvolvedora de processadores eletrônicos. Esses campeonatos, por sua vez, atraem público do mundo inteiro, fomentando o turismo e movimentando a economia local. No ano passado, foi realizado um campeonato mundial do jogo CS:GO, que, em poucos segundos, esgotou arenas no Rio de Janeiro com capacidade de 18 mil lugares.
Já em relação aos benefícios sociais do reconhecimento dos E-Sports como esportes temos a ampliação do acesso aos jogos eletrônicos, com a possibilidade de aplicação de políticas de popularização dos E-Sports, que podem ser levados para quase qualquer região do país, ocupando pouco espaço físico e promovendo o desenvolvimento individual dos praticantes, como já citado anteriormente.
Ademais, é importante ressaltar que, assim como muitos brasileiros enxergam a prática profissional de esportes tradicionais como meio de vida, os E-Sports apresentam essa mesma particularidade, sendo que até mesmo a prática semiprofissional pode ser muito bem remunerada, por meio das plataformas de streaming, como a Twitch.tv ou o Facebook Gaming, contribuindo para a geração de empregos no país.