FUTEBOL, ÉTICA E POLÍTICA: POR QUE O ESPORTE TEM SE DISTANCIADO DA REALIDADE SOCIAL?
Ética, polêmicas, interferência política e a contraditória Copa América: tudo o que rodeou a CBF nos últimos dias.
Por Bruno Machado, Danilo Resca, Kaique Oliveira, Luan Azevedo, Matheus Jesus e Rudá Emídio.
ÉTICA E SUA IMPORTÂNCIA PARA SOCIEDADE
Ética pode ser definida como um conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, grupo social ou sociedade. Esse conceito está presente em todos os setores da sociedade, objetivando fixar e internalizar comportamentos básicos, além de diminuir os conflitos morais e solucionar dilemas. Consequentemente, nota-se como a ética é fulcral nas grandes empresas e organizações (de todo e qualquer ramo), estabelecendo práticas e condutas saudáveis, moralmente corretas e íntegras.
Para o esporte, pode-se dizer o mesmo. Dentro da intrínseca lógica da competitividade, nota-se a ética bem estabelecida em todas as diferentes modalidades esportivas existentes. O “fair play” representa isso de forma precisa: independentemente do nível de competitividade e rivalidade, os atletas sabem as regras e condutas atreladas às modalidades, além da importante função social (com a mensagem que a mesma possui). Assim como nas competições, fora delas o esporte também tem sua responsabilidade de refletir em seu contexto os valores socialmente estabelecidos sobre o que é certo e errado.
Por sua vez, uma gestão esportiva ética é aquela que, dentro de suas decisões, visa manter a integridade e moral de todos os envolvidos nas organizações. Ademais, focaliza numa gestão que quebre paradigmas, combatendo os preconceitos e segregações. Nesse sentido, a ética é de suma importância, uma vez que direciona o esporte no sentido de ser um canal de transformação e inclusão social.
A CBF (órgão máximo do futebol brasileiro que rege as competições nacionais, regulamentando e respaldando as federações estaduais e os clubes) possui seu próprio código de ética e também uma comissão estruturada para tratar do assunto. Ela estabeleceu no seu código de ética de 2018 os preceitos que orientam o futebol brasileiro: a gestão deve ser feita de forma a promover o desenvolvimento social e a redução de desigualdades econômicas e regionais. Por conseguinte, é necessário ser associado a projetos sociais e educacionais que visem a essas finalidades.
Ademais, pontua a essencialidade de todos os segmentos do futebol estarem profundamente comprometidos com o repúdio ao racismo, à xenofobia, e a quaisquer outras formas de intolerância social, política, sexual, religiosa e socioeconômica. Ressalta ainda que quaisquer condutas que consubstanciem assédio ou coação no tocante às escolhas profissionais dos atletas e gestores devem ser denunciadas e rechaçadas.
Portanto, a entidade possui diretrizes bem estabelecidas e pautadas no respeito a vida, bem-estar no trabalho, a saúde e a segurança das pessoas, além de adoção de melhores práticas de governança e a atuação com transparência na gestão e administração do desporto. Entrementes, apesar de normas e diretrizes éticas bem estabelecidas, a CBF envolveu-se num turbilhão de polêmicas e contradições nesse ano. Desse modo, espera-se que a pífia gestão do presidente, atualmente afastado, Rogério Caboclo, marcada por escândalos sobre corrupção, conflitos políticos, assédios, gestões tendenciosas, além da contraditória Copa América que será realizada no país, chegue, de fato, ao fim.
POLÊMICA ENVOLVENDO O PRESIDENTE DA CBF
Rogério Langanke Caboclo foi eleito em 2018 para assumir a presidência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) até 2023. Apadrinhado por Marco Polo Del Nero, afastado pela Fifa por corrupção, e popularmente conhecido como Caboclo, seu nome está nas principais manchetes do país desde o início do mês de junho. Ele foi acusado de assédio moral e sexual por uma funcionária da CBF. Diante da acusação, a confederação afastou-o por 30 dias e publicou uma nota no Twitter no dia 11 manifestando a confiança na Comissão de Ética do Futebol Brasileiro para uma investigação justa, ágil e profunda mediante as acusações apresentadas. Procurado por diferentes meios de comunicação, desde então, Caboclo não se manifestou sobre o caso. Seus advogados de defesa apenas negam o ocorrido e afirmam que a situação será provada na investigação da Comissão de Ética da CBF.
Tratando-se especificamente das acusações, a vítima fez a denúncia no dia 4 de junho à Comissão de Ética e Diretoria de Governança e Conformidade da CBF. A funcionária alegou que Caboclo fizera perguntas de cunho sexual e tentara forçá-la a comer biscoitos para cachorro. Ela também o acusou de chamá-la de “cadela” e outros comportamentos errôneos enquanto estivera alcoolizado. Ademais, Caboclo exigiu que a funcionária assinasse um documento negando o assédio sofrido, porém ela se recusou. Não obstante, algumas gravações comprovam a má conduta do ex-mandatário com a funcionária e a forma, a qual ele se referiu à integrantes da Fifa.
O jornalista esportivo, Pedro Ivo de Almeida, cita Caboclo como “dono da CBF” e ainda escreveu uma matéria relatando as queixas de outros funcionários da sede da confederação. A matéria aponta corte em alguns benefícios de funcionários de menor escalão em detrimento de privilégios para políticos e outros dirigentes de clubes. Outro absurdo elucidado na matéria foi a ordem, pela qual os funcionários só poderiam almoçar depois que Caboclo já tivesse almoçado.
Infortunadamente se nota um comportamento espúrio de um representante de uma das mais famosas e aclamadas organizações de futebol do mundo. No tocante à reação da CBF presume-se que o seu “ex-novo dono” não volte mais às suas rédeas. Hodiernamente, dirigir e administrar uma organização de tal porte exige uma educação castiça. Lídimo de uma vergonha para todos os brasileiros, Caboclo ainda não teve a coragem de se manifestar. “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” assim escreveu Dante em sua “Divina Comédia” quando os protagonistas avistaram a porta do Inferno. Um paralelo ao livro dantesco pode ser traçado a todos os colaboradores que adentraram a sede da CBF na presença de Caboclo e seu indecoroso reinado.
INTERFERÊNCIA POLÍTICA NA CBF
Em razão do agravamento da pandemia da COVID-19, a Copa América de 2020 foi adiada para este ano. Por diferentes razões, Colômbia e Argentina desistiram de sediar o torneio, colocando a Conmebol em uma situação complicada. Nesse contexto, o Brasil, maior país do continente e cuja situação epidemiológica não dá sinais de abrandamento, aceitou, de prontidão, o convite de hospedar as demais delegações nacionais.
De acordo com a imprensa brasileira, o elenco que disputa as Eliminatórias da Copa do Mundo e a comissão técnica da seleção participaram de uma reunião com o então presidente da CBF, Rogério Caboclo, um dia antes do anúncio oficial e não foram informados do convite realizado pela Conmebol. A decisão de sediar o evento internacional, desta maneira, teria sido unilateral, tomada por Rogério Caboclo e pelo presidente Jair Bolsonaro, o qual foi consultado e “prontamente” moveu esforços para realizá-lo.
Em meio ao desgaste político proveniente da CPI da COVID-19, a realização da Copa América seria uma forma do governo federal desviar o foco das notícias para o campeonato. A estratégia, de certa forma, funcionou. Contudo, ao invés do clima festivo, o noticiário brasileiro segue tenso com as polêmicas envolvendo Rogério Caboclo e as inúmeras críticas à realização da competição.
Em coletiva de imprensa concedida na quarta-feira (3), o treinador da seleção deixou em aberto se a equipe participaria ou não do torneio, demonstrando enorme insatisfação da comissão técnica e dos jogadores quanto à sua realização. A participação foi confirmada após a partida contra o Paraguai na terça-feira (8), válida pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, quando os atletas do elenco postaram em suas redes sociais que são “contra a organização da Copa América, mas nunca dirão não à Seleção Brasileira”. O caos, entretanto, já estava instaurado.
A posição de Tite quanto à Copa América desagradou membros do Planalto e apoiadores do governo de Jair Bolsonaro, que passaram a exigir a sua demissão. Para tranquilizar o governo federal, Rogério Caboclo teria prometido ao presidente que faria a troca de Tite por Renato Gaúcho, apoiador aberto de Bolsonaro. Devido ao afastamento de Caboclo da presidência da CBF, o fato não se concretizou, mas a polêmica de influência externa no comando da seleção brasileira reverberou nos noticiários esportivos ao redor do mundo. Essa, todavia, não seria a primeira vez que um presidente interfere diretamente no cargo.
No final da década de 1960, período da ditadura militar no Brasil, o técnico da seleção era o jornalista João Alves Jobin Saldanha. A escolha de Saldanha como técnico é, até hoje, motivo de controvérsias. Crítico ferrenho da seleção, com possíveis ligações ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e com apenas uma experiência como treinador do Botafogo, no final da década anterior, a hipótese mais aceita para a escolha de Saldanha é que o então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange, concordou com a opção para acalmar a imprensa após o fracasso da Copa de 1966.
É importante ressaltar o papel simbólico da derrota brasileira em 1966. Após a conquista mundial de 1958, durante o governo de Juscelino Kubitschek, e de 1962, durante a presidência de João Goulart, o vexame da eliminação na fase de grupos em 1966 transmitia a ideia de ineficiência do regime militar. Por mais que o governo não impacte diretamente no desempenho da seleção na Copa, a historiadora Livia Gonçalves Magalhães demonstra como o imaginário social é influenciado pelos resultados esportivos. Desta maneira, na Copa do Mundo disputada no México, em 1970, era “vencer ou vencer”, visto que os governantes não aceitavam perder esta “importante ferramenta de apoio popular” num momento em que a repressão política tomava outras proporções com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5).
Dado este contexto, voltemos ao papel de Saldanha na seleção. Num primeiro momento, o treinador cativou os jornalistas e os torcedores, além de garantir com tranquilidade a classificação para a Copa. Entretanto, a situação de Saldanha tornou-se conflituosa ao longo de 1970, ano da competição mundial. A principal polêmica envolvendo o técnico foi a desavença com Ernesto Garrastazu Médici, ditador em exercício.
Conhecidos como as “feras de Saldanha”, os jogadores brasileiros eram considerados melhores tecnicamente do que os adversários estrangeiros. Porém, o ponto fraco da seleção seria o jogo físico. Por essa razão, um dos debates futebolísticos da época era sobre a convocação do centroavante Dario, conhecido como Dadá Maravilha, do Atlético Mineiro. O jogador tinha um perfil mais brigador e era uma das preferências de Médici, que construía uma imagem de torcedor assíduo e fanático para aproximá-lo do povo.
Quando perguntado sobre os palpites do presidente na composição do plantel, Saldanha respondeu: “Vamos combinar o seguinte: o senhor escala o seu Ministério, eu escalo a seleção”. Além da afronta ao regime, os militares também se preocupavam com a suspeita de que João levava documentos para o exterior, denunciando a violência do governo. Diante de tais conflitos, o Ministro de Educação e Desportos Jarbas Passarinho determinou que a polêmica na seleção afetava diretamente o país e convocou uma reunião com João Havelange e membros do alto comando do governo, incluindo o então Chefe de Gabinete Militar, João Baptista Figueiredo, futuro governante do regime. O encontro demonstrou o interesse do governo pelo assunto, que passou a ser cada vez mais controlado pelo regime.
Em meio à crise do futebol brasileiro, o comando da seleção foi trocado em março de 1970, quando João Saldanha foi demitido e Mário Jorge Lobo Zagallo assumiu o cargo. A interferência do regime nunca foi comprovada, na mesma medida em que demissão de Saldanha nunca foi totalmente justificada e, até hoje, pairam dúvidas sobre o tema.
COPA AMÉRICA 2021: A CELEBRAÇÃO DO CAOS
A insensibilidade da CONMEBOL diante da pandemia é patente. A realização de uma edição da Copa América em 2020 já gerava críticas antes mesmo dessa situação crítica, uma vez que outra edição do torneio já fora realizada no ano de 2019. Imaginando que no corrente ano o mundo já voltaria à normalidade, foi decidido que o torneio seria postergado para julho de 2021.
No entanto, ao contrário do que se pensava, a crise sanitária causada pelo Coronavírus continua a assolar todo o continente, impossibilitando qualquer clima festivo para a realização de um torneio de seleções. Portanto, a insistência da entidade em realizar a edição demonstra a insensatez e a antipatia características de organizações gananciosas, que estão dispostas a cometer atrocidades para atingir seus objetivos.
Percebendo a situação absurda que seria a realização de uma competição entre seleções no pior período da pandemia e atentos à insatisfação popular em relação ao torneio, as autoridades de Colômbia e Argentina, originalmente os países sede da Copa América, decidiram boicotar os devaneios desvairados da CONMEBOL e acertadamente rechaçaram qualquer possibilidade da realização desse torneio entre seleções nos seus países.
Vendo que nenhum dos países sede originais iria colaborar nessa com essa celebração do caos, os mandatários da CONMEBOL recorreram a nação que certamente apoiaria essa iniciativa gananciosa, o país que tem o uma entidade máxima do futebol afundada em escândalos e o um Executivo Federal condescendente com a pandemia, o Brasil. Cada um dos pilares desse tripé insano vê a Copa América como uma oportunidade de atingir seus principais objetivos.
A CONMEBOL, uma instituição gananciosa e autoritária, quer auferir as divisas que esperava obter com o torneio e demonstrar que tem força suficiente para realizar um Competição Continental em meio a maior crise Sanitária do último século. Os dirigentes da CBF, principalmente o agora presidente afastado Rogério Caboclo, enxergavam a realização da Copa América no Brasil como uma dádiva que agradaria as federações, o Governo Federal e, por conseguinte, salvaria a atual gestão envolvida em uma série de escândalos entre os quais uma denúncia robusta de assédio sexual e moral contra o então presidente Rogério Caboclo e a evidente subordinação da entidade à antigos dirigentes condenados por corrupção.
Por fim, o Executivo Federal, que tem o “negacionismo” como política de governo, quer mostrar para a população brasileira e para o mundo que a pandemia está controlada de tal forma que o país já está apto para sediar um evento esportivo de grande porte.
A moeda de troca dessa barganha irresponsável? Vidas brasileiras. A competição, que será disputada entre os dias 13 de junho e 10 de julho, ocorrerá no momento em que a média móvel de mortes pelo novo coronavírus encontra-se em um platô altíssimo, desde o dia 20 de janeiro esse indicador ultrapassa as mil mortes por dia, e o país se aproxima da terrível marca de quinhentos mil mortos pelo Covid-19.
Posto isso, tudo que o país não precisava no período atual era a chegada de dez numerosas delegações compostas por indivíduos que residem em diversos países e possivelmente estão carregando novas e mortíferas variantes do novo coronavírus. Além disso, outra questão extremamente contraproducente para o país no momento é tornar-se sede de uma competição extremamente custosa, que contribuirá para a avançada deterioração das contas públicas de um país com restrições orçamentárias que impedem uma incursão bem-sucedida do Estado na tentativa de eliminar a miséria. Contudo, a tríplice aliança inescrupulosa ganhou essa “queda de braço”.
Assim, o Estado Brasileiro terá que arcar com o custo monetário da competição e a população brasileira será obrigada a arcar com o custo humanitário dessa celebração do caos.
FONTE:
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