O ESPORTE UNIVERSITÁRIO
Um paralelo entre Brasil e Estados Unidos sobre a organização, impacto financeiro e cultural da modalidade
Por: Ana Karoline, Matheus Theodoro e Ruan de Oliveira
Um breve panorama do esporte universitário no Brasil
TUSCA, InterUSP, O Inter, Caipirusp, Economíadas, InterFAU, Engenharíadas, Copa USP, NDU, BIFE, entre muitos outros, são torneios familiares aos ouvidos da grande maioria dos universitários brasileiros. Frequentemente chamados de “inter”, os jogos universitários são resultado de todo um planejamento minucioso, o qual se estende desde as secretarias municipais da cidade sede, a atletas, que se preparam durante quase todo um ano para competir em nome de sua universidade, faculdade ou, até mesmo, seu curso. Ainda assim, o esporte universitário representa muito mais que os títulos disputados em inters.
Considerando que muitos atletas desistem de carreiras no esporte para buscar um nível superior de graduação, o desporto universitário surge como ponte que atua de modo a conciliar a rotina acadêmica com a esportiva, oferecendo uma camisa pela qual jogar, títulos a buscar e toda uma equipe que entende as limitações implícitas nesse contexto, a partir das associações atléticas acadêmicas. As atléticas são organizações estudantis que visam promover o esporte dentro do campus, e para tal, se vale de estratégias como, por exemplo, parcerias com empresas de material esportivo, promoção de eventos e festas a fim de arrecadar fundos para cobrir os custos fixos das modalidades e torneios que participam. Além disso, as atléticas de cada universidade se associam entre si, criando “ligas” que as gerenciam e, entre outras coisas, manejam as seleções de atletas da própria universidade. Na Universidade de São Paulo (USP), o órgão central que gere o esporte é a Liga Atlética Acadêmica da Universidade de São Paulo, conhecida como LAAUSP.
A fim de aumentar a fluidez do trabalho das associações e ligas atléticas universitárias, há entidades máximas, com jurisdição estadual, nacional ou, até mesmo, internacional, que têm por objetivo regular e garantir a promoção do esporte universitário. As 27 federações universitárias estaduais, por exemplo, compõem, entre outros membros, a Confederação Brasileira de Desporto Universitário (CBDU), entidade que norteia o esporte universitário brasileiro, e que desenvolve eventos como os Jogos Universitários Brasileiros (JUBs), cujas fases eliminatórias ocorrem simultaneamente em todos os estados do Brasil. A CBDU, por sua vez, é uma das confederações membras da Federação Internacional de Esportes Universitários (International University Sports Federation/FISU), que conta com mais 173 confederações de desporto universitário de todos os continentes do mundo; e que, além de seu papel regulatório, promove competições de esporte universitário a nível mundial.
Na prática, os torneios esportivos universitários, são, no Brasil, ainda mais impressionantes. A título de exemplo, o supramencionado O Inter (antigo InterUnesp), reuniu, em 2019, aproximadamente 5 mil atletas e um público total médio de 15 mil pessoas — entre alunos da própria Unesp e de outras universidades — na edição que ocorreu em São José dos Campos, sob organização da Liga Interuniversitária de Esportes Universitários (LIEU), entidade responsável por intermediar projetos entre atléticas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Unesp). O evento, que em 2021 completa 20 anos de ocorrência, é, atualmente, um dos maiores torneios desse gênero na América Latina, tendo como principal objetivo fomentar o desporto universitário por meio da promoção de um inter que envolve os mais de 20 campi da universidade.
Com números ainda mais exorbitantes, a Taça Universitária de São Carlos (TUSCA) movimentou, aproximadamente, 30 mil pessoas nos seus 4 dias de evento, em 2019. O torneio, que envolveu festas com atrações musicais como Ludmilla e MC Kevinho, é organizado pelas atléticas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pelo campus da Universidade de São Paulo em São Carlos (CAASO), com as atléticas convidadas advindas da Universidade Federal do ABC, Escola Politécnica da USP, Fundação Getúlio Vargas e Universidade Estadual de Campinas.
Eventos de tamanha dimensão geram impacto não somente na economia das cidades sede e na promoção do esporte dentro das universidades — uma vez que atraem marcas patrocinadoras -, mas também na vida dos atletas. Um célebre e recente exemplo, é a da ex-aluna de Educação Física e Saúde, na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP), Rafhaela Priolli. A atleta, após demonstrar alto rendimento na seleção USP de handebol feminino, foi convocada para compor a seleção brasileira da mesma modalidade, passando, a partir daí, a construir sua carreira na Europa. Atualmente, a jovem atleta joga na Itália, após atuar pela Espanha, Polônia e Alemanha.
O esporte universitário brasileiro vs. o esporte universitário estadunidense
Quando o assunto é esporte universitário, o Brasil não é, ainda, um ás do incentivo e organização. Por mais que se desenvolvam eventos com movimentações estratosféricas — de pessoas e dinheiro -, os Estados Unidos são a principal referência nesse tipo de iniciativa, e não é por acaso que é o país com o maior número de medalhas conquistadas em Olimpíadas em toda a história.
A principal diferença entre os dois países, no que tange o esporte universitário, é que, enquanto no Brasil o processo de formação dos atletas está culturalmente ligado aos clubes esportivos, nos Estados Unidos, o processo é centrado nas escolas e universidades juntamente com a formação acadêmica. Por exemplo, o futebol, esporte mais querido entre os brasileiros, é visto por muitos jovens periféricos como uma oportunidade única para sustentarem suas famílias, sendo a eles apresentado esse falso dilema do “ou joga, ou estuda”. Além disso, a maioria dos atletas em formação, para se dedicarem aos treinos, jogos, viagens e demais preparações para peneiras, abre mão até mesmo do ensino básico, auferindo grande risco à sua estabilidade futura. Por fim, a desvalorização cultural de outras modalidades esportivas também age contra a solidez do esporte universitário.
Paralelamente, nos EUA, a realidade é outra. Os atletas são chamados estudantes-atletas, uma vez que, antes de serem atletas, são entendidos como estudantes em formação. Além da formação esportiva dispondo de boas estruturas para a prática do esporte, esses jovens são formados academicamente em um sistema pensado para aliar o esporte à educação. Maus alunos, por exemplo, são impedidos de jogar até regularizarem suas notas, sob pena de exclusão permanente de campeonatos e perda de referências para grandes universidades. Como consequência de todos esses elementos, os atletas chegam ao final do seu processo de formação esportiva — i.e., a graduação na faculdade — aptos a atuarem pelas equipes principais e se tornarem jogadores profissionais, dando sequência às suas carreiras.
Essa continuidade de carreira é facilitada pelo elo entre as universidades e as ligas esportivas universitárias, as quais, por sua vez são aliadas às ligas esportivas profissionais. A National Collegiate Athletic Association (NCAA), por exemplo, é a maior liga universitária do país, e tem parcerias tanto com as universidades, quanto com as ligas profissionais de basquete, futebol americano e beisebol. Assim, os alunos que se destacam nos jogos enquanto universitários, terão maiores chances de serem selecionados pelos times profissionais. Um exemplo recente é o de Zion Williamson, fenômeno do basquete universitário estadunidense, que se destacou pela universidade de Duke e foi selecionado com a primeira “leva” da seleção para a National Basketball Association (NBA) em 2019. Antes mesmo de Williamson se profissionalizar, já tornara-se um ícone nacional em razão de seu elevadíssimo desempenho na universidade. Dessa forma, é possível entender como a maneira mais fácil e segura para se tornar um atleta profissional é, nos EUA, por meio dos estudos.
Nesse sentido, evidencia-se, por fim, que o esporte universitário estadunidense compõe um mercado muito mais solidificado que o brasileiro, haja vista que há incentivo à diferentes modalidades esportivas por meio do programa de bolsas de estudo, bem como perspectiva de carreiras de longo prazo, propiciadas pelos clubes profissionais que acompanham de perto a evolução de atletas universitários. Dada a cultura de valorização da formação de atletas locais, jogos universitários são televisionados — e alguns estudantes-atletas chegam a receber propostas de patrocínio antes mesmo de se graduarem.
O incentivo a cultura do esporte universitário: o atleta universitário brasileiro
Se há no Brasil o interesse em aumentar a relevância do esporte universitário dentro do cenário esportivo como um todo, a exemplo do que alguns países já conseguiram, sendo os Estados Unidos o melhor exemplo disso, há ainda muito a ser feito. O esforço necessário para aumentar a relevância cultural do esporte universitário sem dúvidas envolve a participação de uma série de agentes: clubes esportivos, empresas, universidades, entidades estudantis, além do próprio governo, seja na esfera municipal, estadual ou federal. Contudo, o principal elemento para o foco de qualquer ação de transformação são os próprios atletas, aqueles que de fato dão vida ao esporte.
A primeira questão é a compreensão sobre o que é um atleta universitário: é aquele que tornou-se universitário e durante a sua vivência na universidade começou a praticar algum esporte de forma a competir e representar alguma entidade ou é aquele que já praticava o esporte de forma competitiva antes de se tornar universitário e buscou a universidade como uma formação complementar ao seu objetivo de se tornar um atleta profissional? Essa é uma questão bastante ilustrativa, mas que serve como ponto de partida para uma reflexão sobre a diferença cultural existente entre o Brasil e os Estados Unidos acerca da conciliação entre a prática esportiva competitiva e o ensino superior, talvez até sobre o ensino de forma geral, como veremos analisando melhor o contexto brasileiro.
Um levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo em 2016 apresenta informações sobre o grau de escolaridade dos atletas brasileiros que representaram a seleção olímpica de futebol nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. O artigo destaca o percentual de jogadores que haviam concluído o ensino médio e exalta como os números eram superiores em relação aos dados da sociedade brasileira na época. Cerca de 77,7% dos jogadores convocados (14 de 18 atletas), haviam concluído o ensino médio, enquanto que na população brasileira, segundo a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio) realizada pelo IBGE, apenas 39,3% das pessoas entre 18 e 24 anos concluíram o ensino médio, mesmo considerando a região sudeste que é a melhor no ranking, o percentual era de apenas 43,7%.
Ainda entre os convocados, apenas três jogadores chegaram a iniciar o curso superior, mas não chegaram a concluí-lo. Fernando Prass (goleiro) e Rodrigo Caio (zagueiro) iniciaram nos cursos de educação física, mas tiveram que trancar, o mesmo aconteceu com Luan Garcia (zagueiro) que havia iniciado o curso de administração. O artigo ainda aponta uma fala de Luan Garcia que indica um pouco da dificuldade enfrentada pelos jogadores: “Tentei, mas ficou impossível conciliar. Era muita correria”.
Idade e escolaridade dos jogadores convocados para a seleção brasileira de futebol nos jogos olímpicos Rio 2016 | Fonte: Folha de São Paulo
Esse levantamento pode passar a sensação de que a vida universitária seria um empecilho para a carreira desses jogadores como atletas profissionais. De fato esses jogadores em uma idade próxima àquela que estudantes universitários estão concluindo a graduação e iniciando suas jornadas profissionais no mercado de trabalho já haviam sido campeões olímpicos representando o Brasil em uma competição de alto nível com enorme visibilidade. Essa sensação pode ser maior ainda quando analisamos o caso do Neymar, jogador brasileiro com relevância internacional e tido por muitos como o melhor em atividade. Mesmo tendo concluído apenas o segundo ano do ensino médio o jogador foi listado pela revista Forbes como o terceiro atleta mais bem pago do mundo em 2019 com salário/bônus estimado de US$ 75 milhões e patrocínio de US$ 30 milhões.
Um outro levantamento feito pela Revista Quero com base nos dados de dezembro de 2018 a março de 2019 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostrou como o acesso ao ensino superior em uma amostra mais ampla de atletas profissionais também é expressivamente pequeno. De 3.329 jogadores de futebol com mais de 18 anos que assinaram contratos no período estudado, apenas cerca de 1,4% dos jogadores declararam já terem cursado o ensino superior. Isso representa apenas 47 atletas, sendo que segundo a revista, apenas 20 deles possuem de fato um registro de ensino superior completo. Ainda segundo a revista, 83,3% dos profissionais, 2.774 jogadores, declararam terem concluído o ensino médio.
Podemos chegar a conclusão de que a faculdade não é um fator determinante para iniciar a jornada profissional como atleta, ao menos no futebol, assim como não tem relação com o sucesso profissional dos jogadores e em alguns casos a conciliação do ensino superior com a exigência da vida profissional dos atletas pode ser um empecilho à continuidade da carreira. Nesse caso, por uma questão de oportunidades, no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, muitas vezes não são os atletas que se tornam universitários, mas os universitários que se tornam atletas.
A importância das atléticas universitárias
As atléticas universitárias neste contexto passam a ser um dos principais agentes de transformação e incentivo ao esporte universitário. Elas são entidades estudantis geridas geralmente por alunos da graduação e são também uma das principais responsáveis pela organização de campeonatos entre universidades, como já mencionamos. Contudo, elas também cumprem uma função social dentro da universidade. Geralmente elas são responsáveis por acolher calouros nos cursos universitários e promover a integração deles com os veteranos. Também organizam grupos para a prática de esportes, muitas vezes financiados por pequenas contribuições dos próprios alunos interessados. Dessa forma ela permite que os estudantes continuem praticando um esporte que já possuem alguma familiaridade ou comecem a prática de um novo esporte em função do convívio social e da experiência proporcionada. Para aqueles que se destacam e querem participar de competições, elas permitem que os alunos às representem em jogos universitários.
Dessa forma, mesmo que muitos atletas ainda não vejam a universidade como um complemento a suas carreiras profissionais, as atléticas criam condições para a manutenção do esporte universitário como parte da cultura das universidades brasileiras. Tudo indica que conforme as competições universitárias forem crescendo e ganhando cada vez mais visibilidade, certamente passarão a ser um atrativo para atletas que sonham em se tornarem profissionais e estão em busca de aumentar as chances de serem reconhecidos por grandes equipes ou clubes do cenário brasileiro ou até mesmo por equipes estrangeiras. O esporte universitário brasileiro ainda pode ser a porta de entrada para o esporte profissional, mas para isso é necessário que mais organizações valorizem e invistam no esporte universitário, principalmente empresas e clubes, aproveitando o trabalho que já vem sendo feito por centenas de atléticas e outras entidades universitárias em todo o Brasil e mostrando aos jovens atletas que eles também podem estar em competições universitárias onde podem demonstrar seus desempenhos e que isso pode gerar oportunidades. Ao mesmo tempo, uma educação formal na universidade pode proporcionar uma visão mais abrangente sobre a cultura de forma geral, que se não for contribuir para o esporte em si, pode contribuir para a vida desses jovens como cidadãos críticos e como profissionais em outras profissões que forem relevantes para eles.
Fontes:
- Maior torneio universitário da América Latina vai reunir 5 mil atletas em São José
- Institucional — Confederação Brasileira do Desporto Universitário
- Federações
- FUPE | JUBs Fase São Paulo 2020
- FISU Member Associations in the Americas
- FISU University World Cup Football
- Ex-aluna de Educação Física e Saúde da USP integra seleção de handebol
- Tusca — 14 a 17 de Novembro — Compre seu ingresso já
- Com jogos e shows, 40ª Tusca deve atrair 30 mil pessoas por dia e movimentar R$ 20 milhões
- Esporte universitário ganha espaço com patrocinadores — propmark
- Seleção olímpica de futebol estudou mais do que a média nacional — Olimpíada no Rio
- Neymar é o 3º atleta mais bem pago do mundo
- 1,4% Dos Jogadores De Futebol Contratados Nos Últimos Meses Cursaram Faculdade
- https://blog.tempersonalizados.com.br/como-construir-e-gerir-uma-atletica-confira-os-principais-passos/