RACISMO NO FUTEBOL

FEA Sports Business
13 min readSep 20, 2020

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A luta contra uma triste relação histórica que ainda perdura no esporte

O Paris Saint-Germain foi recentemente derrotado pelo Olympique de Marseille por 1x0, num jogo válido pela terceira rodada do Campeonato Francês de futebol. Entretanto, foi o que ocorreu nos instantes finais do jogo que protagonizou pautas jornalísticas e estampou manchetes: uma confusão em campo que resultou em cinco expulsões, incluindo um dos jogadores mais famosos do time, Neymar Junior. O motivo? O craque desferir um tapa na cabeça do jogador do time adversário, Álvaro González, após o zagueiro proferir insultos de cunho racista ao jogador brasileiro. A confusão se estendeu para além dos campos quando Neymar publicou em sua conta oficial sobre o caso, reforçando que não se arrepende de sua atitude e criticando os juízes da partida. González fez um post em suas redes para defender-se da acusação, alegando que possui “carreira limpa e muitos companheiros negros no dia a dia”. Neymar, porém, o respondeu nessa mesma publicação, acusando-o de não ter caráter e reiterando que sofreu racismo.

Questionado sobre o caso, o presidente da Federação Francesa de Futebol (FFF),. Noël Le Graët, afirmou controversamente que não há — ou quase não há — racismo no futebol e no esporte de maneira geral. Quando indagado diretamente sobre o caso específico, Graët apenas lamentou a confusão generalizada, mas não saiu em defesa do brasileiro vítima de ataques racistas — tampouco demonstrou interesse na pauta antirracista. Ademais, o presidente finalizou afirmando que uma das provas de que não há racismo no futebol é que, quando um(a) jogador(a) negro marca um gol, todo o estádio o(a) aplaude. Após ser julgado pela agressão física, Neymar foi suspenso por mais dois jogos, inteirando, juntamente com a primeira expulsão, um total de três jogos expulso. A equipe de Álvaro González publicou uma nota oficial, reforçando que o zagueiro não é racista. Todavia, diferentemente das declarações de Graët, a nota não negou — mas também não confirmou — o proferimento de insultos racistas.

ESTERIÓTIPOS RACISTAS DO FUTEBOL

Infelizmente, o caso González é sintomático, e denuncia a enorme gama de casos envolvendo racismo no futebol mundial, que, ao contrário da declaração feita pelo presidente da FFF, é recorrente. O racismo se dá, no futebol, não somente de forma explícita — como, por exemplo, por meio de insultos diretos ou da discriminação -, mas também de forma estrutural, corroborando com o tratamento desigual a atletas e comissão técnica, bem como com medidas falhas, que propiciam a impunidade do racista. O advogado, filósofo, professor universitário e autor do livro “Racismo Estrutural”, Silvio Luiz de Almeida, em uma entrevista concedida ao programa Troca de Passes, explicou como a estrutura racista do futebol afetou seu pai, Barbosinha, goleiro do Corinthians na década de 1960. O apelido “Barbosinha” fazia alusão ao goleiro Barbosa, jogador também negro, que defendeu falhamente a seleção brasileira na copa de 1950. Desde então, pulverizou-se uma ideia distorcida de que goleiros negros não são confiáveis, a qual se mostra influente até os dias de hoje. Evidência disso é que, entre 1914 e 2006, a seleção brasileira convocou 92 goleiros, mas apenas 12 eram de negros, como aponta o livro “Goleiros — Heróis e Anti-heróis da Camisa 1”. Foi somente 56 anos depois, na copa de 2006, após a convocação de Dida, que o Brasil teve um goleiro titular negro, quebrando-se o “tabu” de mais de meio século.

O número de goleiros negros em times grandes vem crescendo muito nos últimos anos, mas ainda não reflete a diversidade étnica da população, assim como os jogadores de linha. Donald Verônico, autor da pesquisa “O jogador negro no futebol brasileiro: uma história de discriminação” salienta o fato que, devido ao preconceito existente sobre os goleiros de pele negra, muitos meninos podem ter tido seus sonhos destruídos, uma vez que técnicos de categorias de base e de iniciação esportiva os desencorajaram a serem goleiros. Exemplo disso, é o caso de Jefferson, ex-goleiro e ídolo do Botafogo, que, aos 19 anos, ouviu de um dirigente da CBF que não poderia disputar o Campeonato Mundial Sub-20 por ter pele negra.

A estrutura racista que compõe o futebol não afeta apenas os goleiros, mas também dirigentes e treinadores. Prova disso é que, em 120 anos de futebol, foram concedidas mais chances a técnicos estrangeiros brancos do que a técnicos de pele negra. Quanto a isso, Silvio Almeida explica que há poucos negros nessa posição, assim como na de goleiro e na de dirigente, pois são cargos de confiança e o racismo produz a ideia de que os brancos que são racionais e merecedores de confiança. Um dos casos mais evidentes é o de Andrade, técnico do Flamengo em 2009, e que em 2005, foi vetado de assumir o comando do Flamengo apenas por ser negro, como aponta Maestro Junior, diretor de futebol na época. Foi somente quatro anos depois que a chance foi dada a Andrade, que se sagrou campeão brasileiro naquela ocasião. Ainda assim, Andrade não conseguiu se firmar entre os técnicos brasileiros de renome, tendo suas oportunidades limitadas a times pequenos — ao passo que técnicos brancos e, muitas vezes, muito menos bem-sucedidos, continuam ganhando chance em equipes grandes, o que mais uma vez denuncia o racismo estrutural presente no futebol.

Para combater o racismo contra negros em cargos de gerência no futebol, o técnico Roger Machado se mostra uma importante figura. Enquanto treinador do Esporte Clube Bahia, Roger se posicionou diversas vezes, inclusive em coletivas, sobre o tema. Em 2019, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol propôs que, na partida entre Fluminense e Bahia, ambos sendo os únicos times comandados por negros no Brasileirão, os técnicos entrassem com uma camisa estampada com a frase “Chega de preconceito”. A imagem do encontro entre Roger e Marcão, técnico do Fluminense, tornou-se símbolo no combate ao racismo estrutural no futebol. “Negar e silenciar é confirmar o racismo”, disse Roger na coletiva de imprensa após a partida. “Minha posição como negro na elite do futebol condiz com isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando eu vou ao restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Você está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque só eu estou aqui.” Atualmente o time mais exemplar quando o assunto é ações afirmativas, o Bahia busca, desde a eleição de seu atual presidente, Guilherme Bellintani, a aproximação com sua torcida, incluindo em seus projetos de marketing e promoções homenagens a figuras históricas negras, de dentro e de fora do futebol.

Roger Machado e Marcão eram os dois únicos técnicos negros na Série A do Brasileirão de 2019 I Thiago Ribeiro/AGIF

O PAPEL DE CLUBES E FEDERAÇÕES NO COMBATE AO RACISMO

Quando busca-se por informações sobre a atuação histórica de clubes e federações com relação ao racismo, um momento peculiar e que chama a atenção é a “Resposta Histórica” do clube Vasco da Gama. Em 1923 o Vasco tinha em seu plantel operários negros e mulatos e foi campeão. Em decorrência, em 1924 foi criada a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), que impunha restrições quanto às profissões dos atletas inscritos no torneio. O Vasco, então, publicou uma nota dizendo que não “sacrificaria” alguns dos atletas que lutaram por suas conquistas. Outrossim, é importante salientar que os 12 atletas que seriam excluídos e que iria abdicar de sua participação no principal torneio carioca em 1924, eram operários e negros.

Em uma edição do jornal “O Imparcial”, o leitor identificado como J. Sport mostrou preocupação quanto a restrições de profissões que estavam sendo propostas para o esporte carioca. Dentre os ofícios considerados incompatíveis para a admissão dos atletas foram citados cocheiro, carroceiro, cavouqueiro, barbeiro, soldado, caixa de vendas, entre outros. Classificadas pelo próprio leitor como restrições que buscavam ter o esporte composto apenas por “gente mais fina”, ele também aponta que os times de menor expressão, da segunda e terceira divisões, poderiam não achar o contingente necessário de atletas para a disputa de campeonatos. Curiosamente, a carta, que demonstrou a preocupação de J. Sport, foi publicada em 14 de agosto de 1913, mais de 10 anos antes da gênese da AMEA, mostrando a longevidade das intenções segregacionistas por classe — o que, por motivos históricos, se torna segregacionista por raça.

Do exposto, é perceptível que o papel dos clubes e federações no combate ao racismo é fundamental, e que ocorre para além de ações de marketing e exclusão pontual de torcedores. A difusão de informação per se não é ineficaz, mas, claramente, não é o suficiente. É preciso posicionamentos claros e duradouros, bem como ações de inclusão de minorias.

Um exemplo recente que demonstra a importância de um posicionamento dessas entidades, é o caso do Clube Náutico Capibaribe. O clube reconheceu seu passado racista — que só permitiu um membro negro no elenco em 1960, com a chegada de Gentil Cardoso, como treinador — e nessa semana lançou uma camisa inspirada no movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), com o goleiro Nílson Corrêa como protagonista. É importante rememorar que, quando jogava no Santa Cruz, em 2002, Nilson foi alvo de insultos racistas advindos da torcida do Náutico. Outra evidência da importância de ações inclusivas e posicionamento antirracista, é que a Associação Atlética Ponte Preta, o primeiro time com um jogador negro — Miguel do Carmo, um dos fundadores da Macaca — é, agora, o único time das duas maiores divisões do Campeonato Brasileiro a contar com um presidente negro, o primeiro de sua história.

O PAPEL DE MARCAS E PATROCINADORES NESSA LUTA

Atualmente, com a expansão da abrangência de mídias sociais, as grandes marcas esportivas, em conjunto com seus atletas patrocinados, têm papel essencial no combate ao racismo. Devido à capacidade de pulverizar essa importante mensagem, bem como influenciar milhões de seguidores nas redes sociais, as grandes marcas esportivas vêm, cada vez mais, buscando discutir racismo, bem como outras pautas urgentes. A título de exemplo, as três principais empresas de artigos esportivos têm usado de sua influência para transmitir mensagens contra o racismo.

A empresa norte-americana Nike, que ocupa a primeira posição no ranking de maiores marcas esportivas feito pela revista Forbes em 2019 e que patrocina grandes astros do futebol mundial, como Cristiano Ronaldo e Robert Lewandowski, transformou o seu famoso slogan Just Do it (Apenas Faça Isso) para Don’t do it (Não Faça Isso), durante a onda de protestos pelo assassinato de George Floyd, nos EUA, com o propósito de incitar a discussão de pautas raciais. Indo além, a marca, no vídeo da campanha Don’t do it, expressou a importância de não ignorar-se o racismo, bem como não calar-se diante dele, encerrando o vídeo com a ideia de que todos são parte da mudança.

Já a empresa de origem alemã, Adidas, a qual ocupa a terceira posição do mesmo ranking da Forbes e que patrocina Lionel Messi, foi parte de um escândalo, em junho de 2020: um pedido de funcionários, nos EUA, por investigação de racismo envolvendo sua diretora de recursos humanos, Karen Parkin. Apesar disso, a empresa prontamente divulgou que rejeita as declarações dos funcionários e afirmou que a diretora está envolvida em uma coalizão de funcionários nos compromissos globais de diversidade e inclusão da empresa. Ao mesmo tempo, a empresa afirmou também que incluirá um investimento de US$ 120 milhões em comunidades negras, fechou um compromisso de preencher pelo menos 30% das novas vagas nos EUA com funcionários negros ou de origem latina, declarou apoio ao movimento Black Lives Matter nas redes sociais e deu espaço para a diversidade e de gênero na sua campanha Ready for Sport.

Por sua vez, a Puma, que ocupa a sexta posição do ranking da Forbes e que recentemente fechou um patrocínio com Neymar Junior, é uma das pioneiras dentre as marcas esportivas proeminentes a se posicionar contra o racismo e continua nesse ritmo desde então: em 2014 a empresa alemã lançou a campanha “Suor não tem cor”, a qual contava com um vídeo que incluía atletas, crianças e uma música produzida por 21 músicos renomados do rap nacional, como Edi Rock e Ice Blue (integrantes do Racionais MC´s), usando o rap, gênero musical que é, ao mesmo tempo, didático e historicamente engajado no combate ao racismo. Inclusive, mais recentemente, a marca demonstrou ainda estar engajada nessa luta ao prestar homenagem nas redes sociais rapper americano Nipsey Hussle, conhecido por suas músicas com críticas sociais (como a música “Face the World”, em que o artista critica o racismo) e que foi assassinado em 31 de março deste ano.

POSICIONAMENTO DE ATLETAS E LIGAS DE OUTROS ESPORTES

Diferentemente do futebol, muitos esportes no mundo têm um histórico, sobretudo recente, de posicionarem-se diante de questões sociais. Muitos atletas e até mesmo ligas têm se apresentado como expoentes no combate ao racismo, não apenas no mundo esportivo, mas na sociedade como um todo, utilizando a influência que possuem para promover a igualdade racial. Dentre os posicionamentos recentes, que podem ser exemplos para o futebol, há alguns que separamos como destaques:

NBA

O combate ao racismo na NBA não é pauta recente, estando presente na liga desde a década de 1960, quando os Estados Unidos já sofriam com o racismo estrutural na sociedade — principalmente em razão das leis segregacionistas, então vigentes no país. O pivô Bill Russel, primeira grande estrela negra do basquete profissional estadunidense, e, até hoje, maior campeão da história da liga, foi um dos primeiros a mostrar voz ativa no assunto, usando seu sucesso nas quadras para impulsionar sua luta, apesar de receber, até mesmo, ameaças de morte em razão disso.

Além de Russel, muitos outros jogadores, ao longo dos anos, continuaram a se posicionar contra o racismo, em uma luta árdua e gradual que, em 2020, resultou em uma marca histórica: a própria NBA aderiu à luta dos atletas e, como instituição, posicionou-se contra uma série de episódios racistas que ocorriam nos Estados Unidos. Na bolha da NBA, um dos requisitos dos jogadores para a ocorrência dos jogos era justamente a possibilidade de usarem os jogos como plataforma de manifestação, uma vez que a retomada da temporada coincidia com uma onda de manifestações contra a violência policial com a população negra nos Estados Unidos, que teve início por conta do assassinato de George Floyd. O desejo de serem ouvidos, fervente entre diversos jogadores, como Giannis Antetokounmpo, atual MVP da liga, pôde ser percebido antes de esses ingressarem na bolha, quando se juntaram ao povo nas ruas para endossar seu desejo pelo fim da opressão racista.

Em agosto, com os jogos de playoff já em andamento, mais um grave episódio de violência policial, a descarga de sete tiros nas costas de Jacob Blake, negro, por policiais brancos, revoltou os jogadores, que decidiram, em forma de protesto, boicotar os jogos dos dias subsequentes ao episódio. A liga se manteve ao lado dos jogadores, refletindo que, apesar de o racismo ainda existir no basquete, atletas e responsáveis pelo esporte se esforçam para combatê-lo.

Giannis Antetokounmpo, astro do Milwaukee Bucks, ajoelha-se em ato do movimento “black lives matter” I Kevin C. Cox/Getty Images

Lewis Hamilton

O piloto inglês, Lewis Hamilton, maior nome da Fórmula 1 atualmente e já seis vezes campeão da competição, desafiou a Federação Internacional do Automobilismo, a FIA, para manifestar sua indignação contra o racismo. O piloto subiu ao primeiro lugar do pódio no Grande Prêmio de Toscana com uma camiseta dizendo “Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor”, em referência ao assassinato da jovem por policiais, dentro de sua própria casa. Esse posicionamento causou controvérsia, já que, de acordo com as normas da FIA, seria proibido por se configurar como ato político. O protesto de Hamilton recebeu grande apoio popular e, mais tarde, a FIA optou por não investigar o inglês. A posição adotada em Toscana, no entanto, não foi a primeira adotada pelo piloto, que, desde o início do movimento “Black Lives Matter”, apresentou-se como militante pela causa antirracista.

Vale ressaltar que, durante décadas, a Fórmula 1, sob o comando de Bernie Ecclestone, mostrou-se bastante elitizada, conservadora e pouco disposta à abordagens de temas sociais, o que se reflete no esporte até os dias de hoje. Dessa forma, a revolta de Hamilton, assim como de outros pilotos, dado o destaque que possuem, atribui mais força ao movimento.

O campeão Lewis Hamilton pede justiça para Breonna Taylor I Getty Images

Naomi Osaka

Aos 22 anos, Naomi Osaka já é uma das tenistas mais talentosas do mundo. A pouca idade, no entanto, não impediu que a japonesa se manifestasse contra o racismo. A atleta aproveitou-se do fato de uma norma do US Open, torneio que disputou entre o final de agosto e a primeira metade de setembro, obrigar os atletas a jogarem suas partidas usando máscaras, como medida protetiva ao contágio do Covid-19, para estampar no item acessório, a cada jogo, o nome de uma vítima de racismo. Em sua estreia no torneio, por exemplo, a tenista jogou com uma máscara com o nome de Breonna Taylor, pedindo justiça para a jovem, assim como Hamilton.

Além disso, Osaka decidiu se alinhar ao movimento de boicote adotado pelos jogadores da NBA diante dos disparos contra Jacob Blake, se recusando a jogar no US Open no dia em questão. As instituições organizadoras do tênis mundial e do torneio nos Estados Unidos — ATP, WTP e a USTA — concordaram com o posicionamento da japonesa e suspenderam temporariamente a competição. Mais tarde, Naomi Osaka acabou sagrando-se campeã do US Open, coroando seu ativismo e trazendo mais visibilidade para sua luta.

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A FEA Sports Business é uma entidade universitária da FEA USP, que tem como objetivo fazer parte da mudança e da profissionalização da gestão esportiva no país.

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