SEIS PONTOS CRÍTICOS DO RETORNO DO FUTEBOL BRASILEIRO

FEA Sports Business
11 min readOct 4, 2020

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Uma análise da retomada do esporte mais popular do Brasil.

Por Ana Karoline Gonçalves, Mariana Santana e Ruan de Oliveira

Catalisadora de debates, a pandemia de Covid-19 propiciou discussões acerca de diversas medidas a serem tomadas, com a finalidade de reduzir os danos da melhor maneira possível. Se o tema “futebol” é, per se, motivo de controvérsias, o futebol durante a pandemia não poderia ser diferente: como retomar o esporte sem auferir riscos à atletas, comissão técnica, tampouco à torcida? Pensando nesse contexto, e considerando especialmente as consequências do retorno do futebol no Brasil, a FEA Sports Business reuniu alguns pontos considerados críticos no desenvolvimento atípico que os campeonatos têm experienciado nesta temporada de incertezas.

1. O MOMENTO DA VOLTA: COMO SE COMPORTARAM AS LIGAS DE FUTEBOL NO EXTERIOR?

Um dos primeiros países a afrouxarem as medidas de quarentena e isolamento social, a Alemanha vinha enfrentando a pandemia de Covid-19 de forma bastante eficiente. Apresentando maior índice de testagem da população, bem como menor taxa de mortalidade pela doença no mundo, os germânicos propuseram, também, a retomada da Bundesliga, campeonato Alemão de futebol. Com medidas rigorosas de distanciamento social e partidas sem público, sua experiência em campo serviria, também, como parâmetro para outras ligas europeias voltarem às atividades. Além disso, a expectativa era de que, por ser o único campeonato futebolístico em andamento no mundo, os clubes da Alemanha conseguissem mitigar parte dos prejuízos sofridos com a suspensão do campeonato, rendendo cerca de 300 milhões de euros.

Retorno do Campeonato Alemão | Fonte: Deutsche Welle

Após tornar-se epicentro da pandemia de coronavírus em março, a Itália retomou, no começo de junho, seu campeonato de futebol. O país, que no mês em questão tinha, aproximadamente, 70 mortes decorrentes da Covid-19 por dia, liberou seus clubes para treinos com contato desde maio, implementou critérios rigorosos para jogadores e comissão técnica, aumentou o número de testes feitos e manteve rastreio de toda a rede de contato de seus atletas. No mesmo ritmo se desenrolou o Campeonato Espanhol de futebol, com apenas 11 rodadas faltantes para ser finalizado, sendo retomado apenas um dia após o Campeonato Italiano, ambos sem a presença de torcedores.

Pouco depois, e com restrições tão rígidas quanto as de seus vizinhos, a Premier League anunciou o retorno do Campeonato Inglês de futebol em junho. Os ingleses, nessa data, tinham aproximadamente 35 mil mortos, e cerca de 230 mil casos de Covid-19, o que motivou que também jogassem com seus portões fechados. Ainda que a retomada tivesse ocorrido gradativamente, a Inglaterra optou, sem pestanejar, por cancelar definitivamente o Campeonato Inglês de futebol feminino, por não ser tão lucrativa quanto o futebol masculino.

Entretanto, nem todas as maiores ligas da Europa agiram assim. Com registro de casos de coronavírus desde dezembro de 2019, a França atingiu, em abril de 2020, a marca dos 100.000 casos de contaminação por coronavírus. Orientando-se pelos maus prognósticos referentes à pandemia de Covid-19, o país foi na contramão de seu continente e optou por encerrar seu campeonato nacional, a Ligue 1, declarando, no mesmo mês, o clube Paris Saint-Germain como campeão.

2. INSISTÊNCIA PELA RETOMADA DO FUTEBOL NO BRASIL: OS PROTAGONISTAS

Muito encorajado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, bem como pelos secretários do ministério de Paulo Guedes, o precoce retorno do futebol no Brasil contou com outros apoiadores-chave. Protagonizando controvérsias, Vasco da Gama, Flamengo e mais oito clubes do Rio de Janeiro, insistiram pela retomada do Campeonato Carioca, e seu interesse não era somente de trazer alegria para o torcedor quarentenado.

Devido a um contrato no valor de 120 milhões de reais que aufere à Rede Globo de televisão o direito de transmissão do campeonato, é de se entender o porquê de alguns clubes exercerem pressão pela volta do futebol: segundo a UOL, o Fluminense, Botafogo e Vasco da Gama renderiam, aproximadamente, 2,02 milhões de reais — o que, dividido entre eles, resultaria em 675 mil reais para cada clube -, de um total de 3,8 milhões de reais.

Mesmo que o Flamengo não tenha fechado acordo com a emissora de televisão, ele tem a lucrar com o investimento de seu rol de patrocinadores, que conta com o Banco BRB e Adidas. Com a interrupção dos campeonatos, a Rede Globo havia cessado o pagamento por direitos de transmissão, rompendo com uma das principais fontes de receita dos clubes. Após reunião entre as partes em abril deste ano, foi acordado que a emissora liberaria 10% do montante a fim de auxiliar os clubes na mitigação dos danos financeiros sofridos.

Flamengo jogando com as arquibancadas vazias | Fonte: Futebol Interior

Outra entidade que exerceu papel crítico no retorno do futebol brasileiro foi a própria Confederação Brasileira de Futebol, a CBF. Após reuniões virtuais com todas as federações brasileiras, a CBF permitiu, em junho, o retorno dos campeonatos estaduais, desde que ocorressem com portões fechados e com um limite de até 40 pessoas por clube, entre atletas e comissão técnica.

Ainda assim, a retomada do futebol no Brasil foi muito discutida e considerada fora de hora, visto que, em junho, a média era de 1 mil mortes diárias por Covid-19, e o pico de mortes diárias estava longe de ser atingido.

3. STATUS DA CURVA DE CONTAMINAÇÃO POR CORONAVÍRUS: NO HORIZONTE DISTANTE, O PONTO DE INFLEXÃO

O Brasil ultrapassou na última sexta-feira a marca de 145 mil óbitos em decorrência do novo coronavírus, com 708 mortes e pouco mais de 26 mil novos casos registrados nesse dia, segundo o Ministério da Saúde. São cerca de 4,9 milhões de casos confirmados, aproximadamente 2,3% da população brasileira.

Apesar desses dados, o Brasil apresenta números que indicam uma redução na média móvel de mortes . Nos últimos 7 dias, a média foi de 653, o que representa uma redução de 13% em relação aos dados registrados considerando os 14 dias anteriores, sendo o 11º dia seguido em que a média fica abaixo de 700 casos. Situação parecida ocorre com a média móvel que teve redução da média móvel de 12% em comparação aos dados dos últimos 14 dias.

Apesar desses números, ressaltamos que muitas das medidas de prevenção adotadas pela sociedade de forma geral e pelos organizações esportivas só serão encerradas após grande parcela da população está vacinada, algo que não deve acontecer até o ano que vem.

As mortes diárias por conta do coronavírus no Brasil | Via G1

4. OS PREJUÍZOS DE UMA RETOMADA COM PORTÕES FECHADOS

Segundo um estudo encomendado pela CBF em abril, a paralisação das atividades provocaram um prejuízo de cerca de 4 bilhões de reais para o setor. O futebol corresponde a aproximadamente cerca de 0,72% do PIB brasileiro, uma participação relevante de uma atividade que movimenta cerca de 54 bilhões de reais na economia do país. Outro estudo, feito pela Ernst & Young e obtido pelo jornal Estadão, estima que a paralisação diminuiu a receita dos clubes nacionais de futebol em cerca de 2 bilhões de reais em relação a 2019, retornando a um patamar financeiro próximo ao de quatro anos atrás.

O estudo da Ernst & Young aponta a provável disputa de jogos com os portões fechados até o final do ano como um dos principais responsáveis pelo impacto financeiro. Isso porque a ausência de torcedores nos estádios implicam diretamente na receita obtida pelos clubes com bilheteria. Há ainda outro fator importante, sem a possibilidade do torcedor estar presente nos estádios torna-se também menos interessante os programas de sócio torcedores. O estudo aponta uma redução de 40% do quadro de participantes nos programas de sócio torcedor.

Segundo um estudo de análise econômico-financeira dos clubes brasileiros de futebol realizada pelo Itaú BBA, as receitas com bilheteria e programas de sócio torcedor dos principais clubes brasileiros representarem cerca de 14% do total de receitas de 2019, cerca de 855 milhões de reais.

Composição geral das receitas dos principais clubes brasileiros de futebol | Análise econômico-financeira dos clubes brasileiros de futebol — Itaú BBA

O Flamengo é possivelmente o clube que mais será impactado pela ausência da torcida nos estádios. Em 2019 o clube teve um aumento nas receitas com bilheteria e sócio torcedor de 74 milhões de reais, representando um aumento de 76% em relação ao ano anterior. O bom desempenho nas receitas está diretamente associado ao ótimo desempenho apresentado dentro de campo, que motivou os torcedores a irem aos estádios e a participarem do programa de sócio torcedor do clube. Segundo o jornal O Globo, em 2019 a arrecadação com sócios do Flamengo foi de 61,6 milhões de reais.

Receitas com bilheteria e sócio-torcedor dos principais clubes brasileiros de futebol | Análise econômico-financeira dos clubes brasileiros de futebol — Itaú BBA

Ainda assim, o Flamengo já sente na pele os efeitos da pandemia em seu programa de sócio torcedor. Em junho, o clube viu o número de sócios torcedores diminuir abruptamente, tendo perdido cerca de 20 mil sócios nos 2 meses anteriores. O clube tinha na época 99.122 torcedores no programa, bem menos do que os mais de 150 mil sócio-torcedores ativos que o clube já teve. Essa redução gerou ainda outro problema para o clube, pois havia uma multa prevista no contrato em caso de rescisão e muitos torcedores acionaram o Procon, afirmando que sem a possibilidade de acompanhar os jogos, essa multa não deveria ser cobrada ao cancelarem a participação no programa.

5. A TRANSMISSÃO DE CORONAVÍRUS ENTRE JOGADORES

No dia 23 de setembro, a CBF divulgou um relatório de testagem do coronavírus no Campeonato Brasileiro, incluindo as séries A, B e C. Nesse documento, foram considerados os 9.690 testes feitos nos 1.939 jogadores e treinadores inscritos no Portal Médico da CBF, dentre os quais 182 constaram como positivos para o novo coronavírus — isto é, 1,9% do total.

No que diz respeito aos dados individuais de cada divisão, vale ressaltar que 3.896 desses testes foram feitos em clubes da Série A, a qual apresentou apenas 1,3% de casos positivos de corona em relação ao seu total, contrastando com os 2,3% de casos positivos da Série C, entre 2.353 testes realizados. Além disso, em cada divisão houve apenas uma rodada sem casos positivos — 10ª rodada da Série A, 9ª rodada da Série B e 4ª rodada da Série C.

Ainda assim, é importante ressaltar que essa análise inclui dados obtidos apenas da 1ª até 10ª rodada do Brasileirão. O caso do Flamengo, por exemplo, que representou um aumento significativo no número de casos, não está incluso por ocorrer somente na 12ª rodada do Campeonato Brasileiro.

Capa do relatório de testagem do coronavírus no Campeonato Brasileiro | Fonte: CBF

6. INSISTÊNCIA PELO ADIAMENTO DE JOGOS APÓS AFASTAMENTO DE ATLETAS CONTAMINADOS

Logo na primeira rodada do Campeonato Brasileiro, dois jogos foram adiados: São Paulo x Goiás, pela Série A, e Treze-PB x Imperatriz, pela Série C. A partida entre o time goiano e o time paulista chamou bastante atenção da mídia pela confusão que houve no processo de decisão do adiamento. O pedido de suspensão da partida foi acatado porque os jogadores do Goiás souberam apenas algumas horas antes do jogo que estavam infectados e, dos 26 testes, 10 apresentaram resultado positivo para o coronavírus — 8 de jogadores titulares -, impossibilitando, assim, o andamento da partida. Mesmo assim, pela demora nessa decisão judicial, o time do São Paulo só teve a notícia definitiva do adiamento da partida quando já estava em campo para jogar.

Apesar da decisão tomada na 1ª rodada, o Goiás teve que jogar as seguintes partidas, contra o Athletico e contra o Palmeiras, mesmo sem a resolução do problema. Isso se deu pois o argumento utilizado para a suspensão da primeira partida foi a falta de cumprimento do protocolo — tendo em vista que a equipe só foi avisada sobre os resultados oficiais dos exames no dia do jogo -, o que não ocorreu nas partidas seguintes, nas quais eles já sabiam com antecedência dos casos positivos. Logo, por ter concordado com o protocolo no recomeço do Campeonato Brasileiro, tal qual todos os outros times, o clube teria que participar do jogo.

Jogadores do Goiás passando por testes antes do jogo contra o São Paulo | Fonte: Divulgação/Goiás

O caso Flamengo x Palmeiras, já na 12ª rodada, trouxe a polêmica aos holofotes mais uma vez. O clube carioca, que foi árduo defensor do retorno dos campeonatos de futebol no Brasil, pediu a suspensão da partida contra o alviverde após ter um surto de coronavírus em sua equipe. Em meio à incansável batalha judicial que ocorreu na situação, o Flamengo defendia que o clube estaria colocando a saúde dos envolvidos na partida em risco, já que não havia confirmação exata de que os jogadores que entrariam em campo estariam, de fato, sem o vírus, uma vez que os exames não são 100% precisos; a CBF, em contrapartida, defendeu que o protocolo deveria ser seguido e, por se tratar de um caso — segundo a confederação — isolado, não era necessário o adiamento da partida.

Além disso, vale ressaltar que, no fim de setembro, a CBF decidiu que caso os times tivessem, no mínimo, 13 jogadores saudáveis disponíveis para a partida, as partidas não deveriam ser suspensas. O time carioca, que estava com 19 desfalques entre jogadores, afirmou que só tinha 9 atletas de linha disponíveis, enquanto a CBF argumentou que o Flamengo tem, no total, 104 jogadores inscritos no Boletim Informativo Diário.

Por fim, indo de encontro ao que a CBF pretendia e até mesmo do posicionamento de outros clubes — como o Goiás, que divulgou uma nota na qual suplicava para que não houvesse privilégios, relembrando a situação que passou -, o Flamengo, com apoio de sindicatos como o Sindeclubes, conseguiu o adiantamento da partida por meio de uma liminar do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro.

Fontes

  1. Rede Brasil Atual | Volta do futebol no Brasil é ‘mensagem negativa’ a população e ignora casos de Covid-19
  2. CBF.com | CBF divulga relatório de testagem do coronavírus no Brasileirão
  3. Wikipédia | Pandemia de Covid-19 na França
  4. Poder 360 | Compare as curvas de mortes no Brasil, EUA, Itália, Espanha, Alemanha e Coreia
  5. CNN Brasil | Após relaxar quarentena, Alemanha vê curva voltar a crescer
  6. Futebol passa por teste decisivo com a retomada da Bundesliga
  7. Bundesliga anuncia que será retomada no dia 15 de maio
  8. Coronavirus (COVID-19) in the UK — Deaths
  9. Coronavirus (COVID-19) in the UK — Cases
  10. Liga inglesa de futebol feminino é cancelada definitivamente
  11. Campeonato Inglês será retomada no dia 17 de junho
  12. Serie A propõe retomada do Campeonato Italiano no dia 13 de junho
  13. Governo da Itália aprova o protocolo de retomada do futebol e permite treinos em grupos
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